VICTOR NUNES LEAL
Acadêmico Professor Raul Machado Horta,
da Academia Mineira de Letras.
Nasceu Victor Nunes Leal no Município de Carangola, na florescente Zona da Mata, em 1914.
Foi no Distrito de Alvorada, na área rural de Carangola, na porta da Casa Brasil, estabelecimento comercial de seu pai, Nascimento Nunes Leal, português, fazendeiro e comerciante, que Vivaldi Moreira o viu pela primeira vez, ao lado do irmão Sílvio, ficando-lhe a lembrança de dois guris descalços, roupas tão avermelhadas como o barranco em que estavam encostados, encontro que ficou registrado no pitoresco episódio de O Menino da Mata e seu Cão Piloto (pág. 192). Os filhos de Nascimento Nunes Leal e de Pedro Moreira foram encontrar-se poucos anos depois, no Ginásio Municipal Carangolense, onde Victor Nunes Leal concluiu o curso ginasial, sempre com notas excelentes, lembrou o Presidente Vivaldi Moreira no comovido depoimento que prestou sobre Victor Nunes, após sua morte, em sessão desta Academia.
As origens interioranas e rurais são freqüentemente referidas nas recordações de Victor Nunes. No discurso de saudação a Carlos Medeiros e Silva, quando o Ministro do Supremo Tribunal se retirava, para assumir o Ministério da Justiça, em 1966, Victor Nunes, também Ministro do Supremo, evoca o rapazinho caipira de Carangola. Mais tarde, como representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, em 1980, na sessão em que o Supremo reverenciou a memória do Ministro Hanemann Guimarães – uma das maiores admirações de sua vida – Victor Nunes alude ao xucro ginasiano de Carangola nos corredores da Faculdade de Direito da rua do Catete.
O jovem ginasiano alimentava as aspirações comuns do estudante: alcançar o curso superior, tornar-se doutor e com o diploma, o anel e os conhecimentos superar as limitações do meio, para brilhar em cenário mais alto.
A caminhada não foi fácil e os obstáculos foram numerosos. O ginasiano de Carangola ingressou, em 1932, na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, a Faculdade da rua do Catete. Menino bisonho e pobre, diz Victor Nunes, ao recordar esse período de sua vida, fora acolhido na casa de Pedro Batista Martins, amigo e compadre de seu pai, Jurista e Advogado de prestígio nos pretórios do Rio de Janeiro, consagrado processualista a quem caberia redigir o Projeto do Código de Processo Civil, de 1939. Pedro Batista abriu-lhe as portas da atividade jornalística, fazendo a seu favor recomendação logo atendida, por Dario de Almeida Magalhães, então Diretor de O Jornal, órgão líder dos Diários Associados. Na fase do jornalismo, Victor Nunes militou no O Jornal, no Diário da Noite, no Diário de Notícias. Foi redator jurídico de O Observador Econômico e Financeiro e dirigiu a Agência Meridional, órgão de notícias da rede jornalística de Assis Chateaubriand.
Victor Nunes conciliava os estudos, o jornalismo e as tarefas preparatórias do futuro Advogado. Durante o curso jurídico, que é o da fase do jornalismo militante, trabalhou no Escritório de Pedro Batista Martins, em aprendizado que evoluiu da datilografia dos trabalhos profissionais à pesquisa jurídica e ao co-patrocínio de algumas causas. Deixando a companhia de Pedro Batista Martins, o Advogado Victor Nunes passou ao Escritório de Dario de Almeida Magalhães, outro prestigioso Advogado mineiro, radicado no Rio de Janeiro. Foi nesta altura da vida que Victor interrompeu, pela primeira vez, a atividade de Advogado, para atender aos compromissos do magistério superior, advindos da regência interina da cadeira de Política da Faculdade Nacional de Filosofia.
O exercício do magistério conduziu à elaboração de tese e à preparação para enfrentar o concurso de provimento da cadeira. Foram mais de três anos consumidos na metódica preparação, com sacrifício da atividade profissional, que se desenhava auspiciosa. Victor Nunes redigiu nessa ocasião o seu livro fundamental – O Município e o Regime Representativo no Brasil – Contribuição ao estudo do coronelismo –, que é o título da tese de concurso, publicada em 1948, quando conquistou, brilhantemente, a cátedra de Política da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.
As argüições dos examinadores dos concursos de outrora, especialmente os das Faculdades mais tradicionais, caracterizavam-se pela contundência com que o Catedrático, postado, via de regra, no plano superior do auditório, dirigia-se ao examinando em crítica devastadora da Tese, desafiando a resistência moral e intelectual do candidato. No concurso de Victor Nunes, o eminente e saudoso Professor Pedro Calmon, uma das maiores expressões da inteligência brasileira, endereçou ao examinando comentário jocoso e mordaz, dentro do estilo coimbrão dos concursos da época. Trinta e seis anos depois, em carta ao seu dileto amigo Alberto Venâncio Filho, acusando o oferecimento de anotações manuscritas de sua Tese, de autoria do Professor Oscar Tenório, que compôs a Banca Examinadora, Victor Nunes reviveu o clima do concurso, a farpa desferida por Pedro Calmon e a pronta resposta com que devolveu ao laureado acadêmico e saudoso Professor a ironia de sua frase de espírito:
“O seu achado me repõe, como numa fotografia esmaecida, no salão da velha Faculdade Nacional de Filosofia, com livros enfileirados à minha frente e ao lado uma ampla mala cheia de outros que então nem cheguei a consultar. Voltam-me os calafrios das críticas mais contundentes ou mais difíceis de responder.
Ouço de novo as palavras iniciais de Pedro Calmon:
“Disse Capistrano de Abreu, de Pereira da Silva, que ninguém poderia ignorar completamente a História do Brasil sem ter lido a sua obra. Também lhe digo, Professor Victor Nunes Leal, que ninguém poderá ignorar completamente o que seja o coronelismo sem ter lido sua tese.
Quase afundei com a risada que sacudiu o auditório, mas, pronto, me preparei para pagar na mesma moeda, quando me coube responder: “Ilustríssimo Professor Pedro Calmon. A admiração e o respeito de que é merecedor não me impedem de lhe devolver, com a devida vênia, o dito de Capistrano de Abreu. Ninguém poderá ignorar completamente o que seja a minha Tese sem ter ouvido a argüição que V.Exa. acaba de fazer”. Os risos da assistência compensaram o meu desalento inicial, mas a chamada de cada um dos examinadores reabria minha ansiedade.”
Vencida a etapa do concurso, Victor Nunes assumiu posições e cargos relevantes na Administração Federal do País, atendendo a diversas convocações. A partir de 1950, exerceu, sucessivamente, as funções de Procurador Geral da Justiça do Distrito Federal, a Chefia da Casa Civil da Presidência da República, no período presidencial de Juscelino Kubitschek, sucedendo a Álvaro Lins, nomeado Embaixador em Portugal, a Procuradoria Jurídica junto ao Tribunal de Contas do Distrito Federal e a Consultoria Geral da República.
Conta Victor Nunes que, sondado por Álvaro Lins, para o exercício da Chefia da Casa Civil da Presidência da República, ponderou-lhe a falta de vivência da vida pública e o receio, por isso, de não desimcumbir-se bem dos pesados encargos. Álvaro Lins retrucou-lhe prontamente, dando-lhe este conselho: Nunca diga isso ao Juscelino, se você for convidado. Ele não aprecia as pessoas que se julgam incapazes. Ele não sabe latim nem teologia, mas está convencido de que, se fosse eleito, seria o maior Papa da história.
Deixando a Casa Civil, com o propósito de reassumir a Advocacia, Victor Nunes exerceu função diplomática transitória, chefiando a Delegação Brasileira à IV Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, que se realizou em Santiago do Chile. O retorno à Advocacia não se deu nesta fase. Impediram a realização do acalentado projeto o exercício das funções de Consultor Geral da República e de Procurador junto ao Tribunal de Contas do Distrito Federal, em comissões que lhe foram atribuídas pelo Presidente Juscelino Kubitschek. E, finalmente, em dezembro de 1960, sobreveio a maior convocação, a nomeação para Ministro do Supremo Tribunal Federal, coroando a vida do Jurista, escolhido para exercer a mais alta função do Poder Judiciário, o que normalmente adiaria para tempo lingíquo a volta à Advocacia, ou poderia até mesmo dispensá-la.
A produção intelectual de Victor Nunes Leal reúne numerosa obra jurídica e política, representada por livros, conferências, pareceres, votos, discursos e artigos, em manifestações da atividade em função dos cargos que exerceu, ou para atender solicitação de consultoria.
O autor de obra dessa natureza não desfruta a disponibilidade de espírito dos trabalhos que brotam da criação autônoma e favorecem as expansões da liberdade criadora na prosa e no verso. Refletindo as circunstâncias da produção engajada, a obra de Victor Nunes distingue-se pelo estilo fluente, a correção da linguagem e o rigor do pensamento e do raciocínio. Pelos temas versados, não é obra do contingente e do efêmero.
O livro fundamental de Victor Nunes – O Município e o Regime Representativo no Brasil – Contribuição ao estudo do Coronelismo –, no título originário da Tese de Concurso, que recebeu a denominação Coronelismo, Enxada e Voto na edição posterior, contém a análise de comportamento político que lança raízes remotas nas instituições políticas brasileiras. Os antecedentes do Coronel – chefe político, proprietário rural ou abastado comerciante –, localizaram-se nos senhores rurais, donos das terras, donos dos homens e donos das mulheres. Os verdadeiros donos do Brasil, como a eles se referiu Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, fixando o retrato da sociedade patriarcal no Brasil.
Victor Nunes, homem culturalmente vinculado à Zona da Mata de Minas Gerais, concentrou-se na figura do Coronel político da Primeira República, deixando de lado a figura feudal do Senhor de Engenho. A atração de Victor Nunes pelo coronelismo e a configuração sistemática de seu comportamento pode ser explicada por lembranças de infância na mata mineira, região que desenvolveu o sistema de poder e os processos políticos do coronelismo. Lembranças que se fixaram no fundo da consciência, para, mais tarde, na idade adulta, adquirirem nitidez na análise objetiva do fenômeno político.
Victor Nunes concebe o coronelismo como manifestação do poder privado, associado ao Poder Público, mediante compromisso fundado na reciprocidade de interesses. O coronelismo não é fenômeno autônomo. Na visão de Victor Nunes, o coronelismo é fruto de um pacto, que se apóia no Poder Público e depende dele. São componentes do sistema o Chefe Municipal, que detém a força eleitoral, os votos de cabresto, e o Poder Público, que dispõem do poder de nomear. E assim nos aparece este aspecto importantíssimo do coronelismo, diz Victor Nunes, que é o sistema de reciprocidade: de um lado, os Chefes Municipais e os coronéis, que conduzem os magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça (O Município e o Regime Representativo no Brasil – Contribuição ao estudo do coronelismo – págs. 25/26). Esse quadro de prebendalismo político é da essência do compromisso coronelista – salvo situações especiais que não constituem regra –, o qual, na conceituação de Victor Nunes, consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao Município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar (obra citada, pág. 30).
A relação entre o coronelismo e o poder municipal levou Victor Nunes a proceder ampla e exaustiva análise da estrutura legal e econômica dos Municípios no Brasil, desde o período colonial até o período republicano. Deteve-se nas finanças municipais, para criticar o sistema tributário no Império e na República, apontando os sinais amenizadores do pauperismo tributário dos Municípios, que despontavam no texto constitucional de 1946. Analisou a extensa legislação eleitoral, o formalismo das eleições, o falseamento do processo eleitoral, a política dos Governadores e a política dos Coronéis. Expôs a trama solidarizante entre o bico de pena na eleição, a depuração dos eleitos no reconhecimento político dos poderes e o coronelismo.
Victor Nunes anteviu as transformações que abalariam a permanência do sistema coronelista. Nas páginas iniciais de seu livro, anotava as mudanças que se operaram nas eleições presidenciais de 1945 e nas eleições estaduais de 1947, a influência do rádio e da propaganda política, afetando a rigidez hermétrica do sistema. Nas considerações finais, retornou ao assunto, para aprofundar a análise dos abalos verificados no coronelismo clássico, provocados pela instituição da Justiça Eleitoral, o voto secreto, o aperfeiçoamento do processo das eleições, o alargamento das garantias da Magistratura e do Ministério Público, a industrialização e a urbanização.
A decomposição do coronelismo acelerou-se, mais recentemente, com a difusão dos meios de comunicação de massa, a concentração eleitoral nos grandes centros urbanos e a democratização do regime político. Victor Nunes fixou, em obra clássica, o apogeu do coronelismo, que coincidiu com a plenitude do compromisso entre o Poder Público e o Chefe Político local, na Primeira República. O coronelismo está sendo substituído por outras formas de liderança e de poder na sociedade industrializada do Brasil moderno. O sistema político que o coronelismo estruturou sobrevive no Brasil moderno arcaico.
O conhecimento do coronelismo e do sistema de poder a ele inerente não se poderá alcançar sem a consulta da obra fundamental de Victor Nunes. Daí a inegável atualidade e a permanência de sua contribuição ao estudo do coronelismo.
Problemas de Direito Público reúne trabalhos publicados, em épocas diversas, especialmente na Revista de Direito Administrativo e na Revista Forense, analisando, com profundidade e segurança, temas de direito Constitucional e de Direito Administrativo. No estudo intitulado Técnica Legislativa, que abre o volume, Victor Nunes, cioso da boa redação legislativa, encarece a importância da arte de fazer as leis. Reportando-se aos conselhos de Montesquieu, Victor Nunes insiste na clareza, na correção da linguagem e na simplicidade do estilo, verberando as leis feitas de afogadilho. No prefácio ao livro Estado e Partidos Políticos no Brasil, de Maria do Carmo Capello de Souza, renova a preocupação estilística, recomendando que a linguagem deve produzir sempre a mais ampla comunicação, mesmo a dos especialistas (pág. XIII). Na classificação das Normas Jurídicas, outro trabalho de Problemas de Direito Público, Victor se detém no exame da pluralidade de normas do ordenamento jurídico e faz a apreciação das várias classificações propostas. Personalidade judiciária das Câmaras Municipais esclarece tema controvertido, partindo da distinção entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária das Câmaras Municipais para postularem em Juízo.
Problemas de Direito Público, que se concentra em questões suscitadas pelo Direito Brasileiro, percorre, em densa análise, ampla temática, nela abrangendo Delegações Legislativas, Leis Municipais, Valor das decisões do Tribunal de Contas, Restrições à autonomia municipal, dentre outros assuntos que Victor Nunes desenvolveu, imprimindo a todos eles a autonomia do pensamento crítico e o rigor nas fontes referenciais.
A familiaridade com a doutrina constitucional e política, a clássica e a contemporânea, reflete-se em dois ensaios de Victor Nunes. No primeiro, inspirado na convocação da Assembléia Nacional Constituinte de 1946, expõe os fundamentos e a natureza do Poder constituinte. No segundo – A Divisão de Poderes no Quadro Político da Burguesia –, no qual é visível a influência do cientista político inglês Harold Laski, não poupa a teoria formulada pelo Barão de la Brède e de Monteisquieu, que lhe afigurava uma construção doutrinária superada. Mais tarde, em comunicação apresentada à VIII Conferência Nacional dos Advogados, sob o título Liberdade, Desenvolvimento e Advocacia, Victor reconheceria o exagero da apreciação, confessadamente decorrente do fascínio pelas idéias do autor das Reflections on the revolution of our time.
O Poder Judiciário é tema constante na bibliografia de Victor Nunes Leal, seja no plano geral de sua organização, como no ângulo específico da atividade de seus órgãos. Incluem-se no primeiro domínio as Notas que redigiu, a propósito da História do Supremo Tribunal Federal, de Leda Boechat Rodrigues, comentando, com o conhecimento direto das fontes, a atuação do Supremo no período inicial da República, atropelada por contestações e iniciativas hostis do Poder Executivo, e a conferência sobre a Justiça Ordinária Federal, no ciclo de estudos sobre o Poder Judiciário Brasileiro, promovido pela Revista Brasileira de Estudos Políticos, a festejada publicação, fundada e dirigida pelo eminente confrade, Professor e Acadêmico Orlando Magalhães Carvalho, que me honra nesta noite com o discurso de recepção. Ao segundo grupo pertencem os trabalhos de Victor Nunes relativos à atividade e funcionamento do Supremo Tribunal Federal, preconizando o aperfeiçoamento do órgão e a eficácia de suas decisões: Atualidade do Supremo Tribunal, O requisito da relevância para redução dos encargos do Supremo Tribunal, Passado e Futuro da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
Não se pode dizer que Victor Nunes tenha sido torturado pela forma. Os manuscritos de sua autoria revelam a fluência da fase, sem as substituições ou correções freqüentes que denunciam a redação laboriosa e torturada. O cultor das boas letras se revela na elegência da frase e do estilo. Essas qualidades, que se acham presentes em seus trabalhos, de modo geral, ganham relevo nos seus discursos. São verdadeiras peças literárias. A linguagem do discurso não é a linguagem contida dos textos doutrinários, das conferências ou das decisões judiciais. No discurso, a eloqüência e a imaginação envolvem as palavras e a reconstituição de fatos e de pessoas libera o escritor. Nos discursos de Victor Nunes, a captação dos traços psicológicos das pessoas demonstram a força descritiva do biógrafo e do historiador.
O retrato de Carlos Medeiros Silva, que resultou do convívio de mais de trinta anos, destaca-se nesta passagem do discurso de despedida ao Ministro do Supremo:
“Mal começava o ano de 1932, quando fui acolhido, menino bisonho e pobre, na casa maternal de sua irmã, a inesquecível D. Julieta, onde encontrei o recém-Advogado Carlos Medeiros, que militara no Jornalismo e começava triunfantemente sua carreira profissional. Literatura, Artes, Filosofia, Política, História e, mais que tudo, Direito, o moço juiz-de-forano deglutia com inesgotável fome de saber, seduzido pelo espetáculo da inteligência e da imaginação criadora. “Leia isto”, “Leia aquilo”, “Não perca tempo com essa droga”, aconselhava-me o preceptor pouco mais velho que eu, abrindo ao meu espanto, sobretudo pela irreverência para com os “medalhões”, amplos horizontes que eu mal entrevia na minha pequena cidade provinciana. Em sua cabeça de rebeldes mechas douradas fervilhava o sentimento do mundo, e o inseparável e basto bigode já lhe dava esse ar severo que sempre lhe marcou a fisionomia.”
Os pendores do memoralista afloram em outro período do mesmo discurso, evocando ambiente e pessoas:
“O rapazinho caipira de Carangola sentia-se deslumbrado e atônito naquela roda, onde flamejavam inteligências invulgares como Francisco Campos, fulminante na visão de conjunto e na dialética: Pedro Martins, capaz de dominar em poucos dias o assunto que mais ignorasse; Sobral Pinto, que nunca separou a poderosa cabeça da sensibilidade vibrátil, embainhando o florete justiceiro no próprio coração: Rodrigo Melo Frango de Andrade, a imagem da lucidez e do equilíbrio: Saboia de Medeiros, muito mais falado que presente, porque era difícil arrancá-lo de sua prodigiosa biblioteca; Alberto Campos, impiedoso no Corte satírico, Aníbal Machado, boêmio-patriarca que fazia de sua casa um trepidante clube de intelectuais em sessão permanente…”
Os dois discursos que Victor Nunes proferiu em homenagens prestadas ao Ministro Hahnemann Guimarães – que Victor considerava o maior Juiz do Supremo Tribunal em todos os tempos – são modelos da oratória forense. O primeiro, como Ministro do Supremo, na sessão de despedida de seu antigo Professor da Faculdade Nacional de Direito, e o segundo, já atingido pela aposentadoria que o afastou da Corte Suprema, de forma arbitrária e prematura. A vida e a obra de Hahnemann Guimarães são percorridas na evocação do Homem, do Professor e do Juiz. As duas peças oratórias evidenciam o cuidado que Victor Nunes punha na elaboração de seus trabalhos. Os discursos se fazem acompanhar de notas explicativas sobre as fontes a que recorreu e de depoimentos obtidos de contemporâneos do homenageado.
No discurso sobre o centenário de Rafael de Almeida Magalhães, magistrado que iluminou, com sua cultura e inteligência, o antigo Tribunal da relação e a Faculdade de Direito, recolho observação que fixa particularidade comum a Rafael Magalhães e a Victor Nunes. Informa Victor Nunes que, na elaboração de seu discurso, compulsou perto de uma centena de decisões e pareceres publicados na Revista Forense. A absorvente atividade do Procurador Geral da Justiça e do Magistrado explicavam, aduzia Victor Nunes, a falta de produção especificamente literária de Rafael Magalhães, cultivado nos melhores autores, permanente comensal da literatura francesa, portuguesa e brasileira, com especial devoção por Machado de Assis. Rafael de Almeida Magalhães pertencia à geração que se contaminou, lembrava Victor Nunes, da excitante epidemia anatoliana e no seu discurso recolhe o belo depoimento de Milton Campos, outro anatoliano, também tocado, como Rafael Magalhães, pela graça mediterrânea, misto de gentileza, de finura, de ironia e de desencanto. Entre os documentos pessoais de Milton Campos, que minha esposa Regina, sua filha, carinhosamente reuniu, encontramos a cópia desse discurso de Victor Nunes, com esta dedicatória: Ao caro Dr. Milton, com os meus agradecimentos pelos “empréstimos”. Victor. 14-12-66.
No conjunto dos discursos de Victor Nunes, destaca-se a oração com que agradeceu a concessão do título de Professor Emérito da Universidade de Brasília, a cuja iniciativa se associou, como animador da idéia, na concepção do projeto governamental, e depois na qualidade de Professor de Introdução à Ciência Política, de Direito Constitucional e Coordenador do Curso de Direito, Economia e Administração daquela universidade. O discurso do Professor Emérito é página de memorialista, reconstituindo as etapas marcantes de sua laboriosa vida: o curso na Faculdade de Direito, o jornalismo, a advocacia, o magistério superior, as pessoas de seu convívio, o concurso na Faculdade Nacional de Filosofia e os cargos públicos que exerceu.
Se a abundante produção jurídica não permitiu a Victor Nunes dedicar-se especificamente à atividade literária, a formação literária compõe sua vida espiritual e se manifesta nos trabalhos que produziu.
A atração literária marcou o período em que estudou no Ginásio Carangolense. Vivaldi Moreira, com a autoridade da amizade que durou sessenta anos, em página de saudade, menciona a farta colaboração de Victor na Revista do Ginásio Garangolense: tudo poesia, sonetos, odes, poemas. A influência literária na mocidade é recordada na carta de Victor Nunes a Alberto Venâncio filho, que teve a bondade de confiar-me o texto. Escrevendo nas vésperas dos setenta anos, Victor fala em Manuel Bandeira e Carlos Drummond, nas relações com o poeta de Estrela da Manhã. Na apreciação de Vou-me embora p’ra Passárgada, revela qualidade de crítico literário, que poderia ter sido e não foi, como se recolhe na confidência literária a Venâncio Filho, exaltando a presença de Manuel Bandeira:
“… Bandeira foi a maior emoção literária que experimentei, ao mudar-me para o Rio, no ano de 1932, em busca do canudo de Bacharel. Em Carangola, no Ginásio, pouquíssimo sabíamos dos poetas mais modernos. E Drummond só entrou para o meu santuário depois de Bandeira. Meu trabalho no Gabinete do Ministro Capanema contribuiu para isso. Também minha passagem pela Faculdade Nacional de Filosofia, onde tantas vezes pude convesar com Bandeira, na Congregação ou nos intervalos das lições, me revelou a naturalidade e a delicadeza humana do poeta sublime. Certa vez o vi sorrir meio matreiramente, quando observei que ele, ao escrever “Vou-me embora p’ra passárgada”, não devia pensar em libertinagem, apesar das aparências, porque certamente estava apaixonado. Por isso, é que duas vezes aludiu à mulher “que eu quero”: “Lá tenho a mulher que eu quero na cama que escolherei”; “Lá sou amigo do rei – terei a mulher que eu quero na cama que escolherei. “Em outra ocasião, quando ele recebia uma homenagem na Livraria José Olympio, eu lhe disse que tinha lido o poema “Estrela da Manhã” umas cinqüenta vezes, porque não conhecia nada mais expressivo da fraqueza do coração humano. E ele imediatamente repetiu minhas palavras, em voz alta, para seu anfitrião”.
Com pouco mais de quarenta e seis anos, Victor Nunes Leal alcançou o Supremo tribunal Federal, recolhendo a consagração pública do Jurista. Ingressava na Corte Suprema na plenitude de sua vida e lavava para o posto a contribuição do saber sedimentado no aprofundado conhecimento do Direito. O exercício da advocacia, do magistério superior e de altos cargos relacionados com a diuturna interpretação do Direito davam-lhe o suporte da preparação, do amadurecimento e da probidade exigidos pelo cargo de Ministro do Supremo Tribunal. Confirmava-se a espirituosa previsão de colega do remoto tempo do jornalismo, quando dizia que Victor Nunes, naquela época distante da mocidade, já estudava para ser Ministro do Supremo.
Foi intensa a participação de Victor Nunes no Supremo Tribunal. Não é este o momento de sua reconstituição. Basta lembrar, para exemplifica-la, os votos proferidos nos casos que envolveram a liberdade de pensamento e a liberdade de cátedra, a ilegalidade da prisão por excesso de prazo, a incompetência da Justiça Militar para o julgamento de Governador de Estado, o alcance do ato do Senado Federal para suspender normas declaradas inconstitucionais pelo Supremo. Foram votos proferidos no período em que a autoridade se exacerbou e a liberdade individual sofreu mutilações. Os pronunciamentos de Victor Nunes, que integram a coletânea dos Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal, organizada pelo Ministro Edgard Costa, revelam, ao lado da competência e da serenidade do julgador, a constante preocupação de buscar nos precedente do próprio Tribunal a inspiração da impessoalidade da decisão, afastando o Juiz das paixões, dos sentimentos e das paixões, dos sentimentos e das inclinações que obliteram o julgamento.
O Ministro empenhou-se na formulação de novos instrumentos para acelerar o processo decisório, seja pela identificação imediata das decisões da mesma natureza, ou pela fixação da relevância da questão, de modo a afastar as pretensões despidas daquela característica, objetivando aliviar o volume dos julgamentos da Corte Suprema. A primeira solução, inspirada no Restatemente of the law dos norte-americanos, incorporou-se ao procedimento do Supremo e a segunda, depois de acolhida a proposta de reforma do Poder Judiciário, que contou com sua decidida colaboração, converteu-se em regra da Constituição de 1967. As duas soluções de correram da iniciativa modernizadora de Victor Nunes.
Oito anos após o seu ingresso no Supremo, Victor Nunes atingiu, por eleição de seus pares, a Vice-Presidência de nossa Corte Suprema. Dentro da rotatividade observada na sucessão dos titulares do órgão, alcançaria, dois anos mais tarde, em 1970, a Presidência do Supremo Tribunal. Estaria com cinqüenta e seis anos, ainda na plenitude de seu vigor. Seria o momento de concretizar planos acalentados na visão daquele instante de comando do Poder Judiciário. O destino barrou-lhe a legítima aspiração. Surpreendeu-lhe aposentadoria compulsória prematura, em ato que negava as garantias tutelares da Magistratura. Victor Nunes viu-se afastado do Supremo Tribunal, juntamente com os Ministros Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, na hora solar de sua vida de Juiz.
Em determinada fase do processo revolucionário, desencadeado em 1964, para desfazer a versão que no Supremo se formara bloco hostil ao Governo da época, Victor Nunes, em documento no qual expôs a missão constitucional da Corte Suprema, fixou nestas palavras o perfil do Ministro do Supremo:
“Quem chega ao Supremo Tribunal tem um passado pelo qual zelar, na Advocacia, na Magistratura, no Magistério, em funções administrativas ou políticas. E está atento ao julgamento dos contemporâneos e da posteridade. O Juiz, mormente do Supremo Tribunal, não recompensa benefício, mas exerce uma elevada função que exige espírito público e dignidade”. (“Sobral Pinto, ribeiro da Costa e umas lembranças do Supremo Tribunal na Revolução” – Rio de Janeiro – 1981 – pág. 36)
O ato que o golpeou, sem motivação, como frisava no comentário discreto da aposentadoria, não abateu o ânimo do lutador. Retornou à advocacia, o abrigo a que sempre retorno nos desencontros da vida, o ponto de retorno das andanças inconclusas, para nos valermos de suas palavras, reunindo em torno de si um grupo seleto de advogados nos Escritórios de Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.
A vida como uma sucessão de fases inconclusas, que Victor Nunes concebeu na visão retrospectiva de suas etapas, é fruto da humildade sem par, na explicação do Ministro Sepúlveda Pertence, seu amigo e devotado colega, desfazendo afetuosamente a versão fundada na modéstia de Victor.
Ao contrário de inconclusas, cada fase de sua vida encerra uma afirmação e um triunfo. O acervo de suas atividade é impressionante. Cada livro, voto, conferência, lição, parecer, discurso ou alegação identifica Victor Nunes na inteireza do ser e do saber.
A chama da inteligência e a pugnacidade do combatente apagaram-se na noite de 16 de maio de 1985. A generosidade de seu espírito nos legou o patrimônio inestimável de seu livros, de usas idéias e de seu exemplo. Este legado imperecível tornará Victor Nunes Leal sempre lembrado nesta Academia e nos centros que cultivam e prezam os valores da inteligência, do saber e da dignidade humana.