VICTOR NUNES
Professsor Orlando Carvalho, ao receber
o Ministro Victor Nunes Leal na Academia Mineira de Letras.
Por detrás da Serra da Mantiqueira, que se desdobra em serrania sem fim até às margens do rio S. Francisco, instalou-se uma coletividade humana desde o século XVII, cujos caracteres e cujas ações, moldados no isolamento das montanhas, atraem a atenção de estrangeiros e nacionais que pretendem – nem sempre com generosidade – interpretá-los e classificá-los. Esta coletividade somos nós, mineiros das Minas Gerais, estes montanheses ensimesmados, sisudos e irônicos, desconfiados e cordiais, objeto de exames e considerações, que vão de Saint-Hilaire a Cecília Meireles, olhados como bichos de jardim zoológico através das gerações, e que, por vezes, não somos definidos senão pelos momentos dramáticos de nossa convivência, pelas horas de crise que as circunstâncias exacerbaram e raramente pelos traços de continuidade e de consolidação que o tempo veio paulatinamente tecendo até fazer do mineiro, em três séculos, um tipo, e de Minas Gerais um mistério, sobre os quais convergiram e convergem as atenções de tantos pesquisadores dignos de apreço, quer sejam de fora, quer sejam dos nossos, quer nos tenham apreciado, que nos tenham farpeado sem piedade, como o velho José Bonifácio, na famosa advertência a Dom Pedro I, antes de sua viagem a Minas Gerais:
“Não se fie Vossa Alteza Real em tudo que lhe disserem os mineiros, pois passam no Brasil pelos mais finos trapaceiros do Universo, fazem do branco preto e do preto branco, mormente nas atuais circunstâncias em que pretendem mercês e cargos para deitar poeira nos olhos de Vossa Alteza Real, para se livrarem dos atentados e crimes que cometeram; contudo, segundo o ditado francês, há homens honrados até na Normandia”.
Como estava longe o Patriarca de entender a afável desconfiança dos mineiros, tão bem relatada por Miram de Barros Latif:
“Quando um viajante, procurando pouso, grita – “ó de casa!”, a hospitalidade mineira logo o acolhe, sem nenhuma reserva. Recebe-o até com satisfação, à procura de notícias, de novidade, que, numa conversazinha, quebrem o alheamento em que se vive. Instala-se o forasteiro, cumulado de atenções, no quarto de hóspedes junto à sala na frente da casa. Mas, depressa esgotam-se os assuntos; em pouco, já não há nada para aprender e, chegando a escuridão da noite, quando os fantasmas da imaginação põem-se a vagar mais à vontade, o forasteiro torna-se o intruso. Isolam-no, então, prudentemente, fechado a porta do corredor que liga as peças da frente ao resto da habitação. E a família assim resguardada, retira-se aos quartos para, em conselho, sentada sobre as camas, comentar, num “zunzum” apenas perceptível, as intenções do hóspede desconhecido”.
Esses mineiros diplomáticos e desconfiados – que sabem que não se controla a palavra, depois de proferida – falam pouco, só o necessário e o necessário dentro do possível – esses mineiros, dizia, são um mistério para o Brasil. Rubem Braga o intuiu, numa crônica admirável, como tudo o que ele escreve, quando se referiu a uma viagem encantada de Emílio Moura ao Rio de Janeiro:
“É de vê-los, os mineiros, quando uma tarde se telefonam e se dizem – que a Vanessa chegou. Durante dois, três dias, sempre que se encontram na rua ou em um bar, eles se detêm um instante como duas formigas que se cumprimentam e anunciam que Vanessa está aí. Eu jamais vejo Vanessa, mas sei que ela veio magra, ou cortou os cabelos, ou engordou; creio que nenhum deles namora Vanessa, mas a presença de Vanessa e mesmo a simples iminência da presença de Vanessa é uma espécie de senha que os faz estremecer. Às vezes vem Milton, às vezes vem Abgar, e sinto que Rodrigo telefona a Afonso e a Drummond. Ainda não me expliquei é como vem Emílio Moura. E difícil supor Emílio Moura numa poltrona de avião ou mesmo dentro de um trem. Parece que Emílio Moura se desencarna em Minas e se reencarna nas imediações da casa de Fernando Sabino. Então se faz anunciar – e é como se da sagrada fortaleza de Machu Pichu descesse ao vale de Olantaitambo o Supremo Inca Lento e Manso. Lentamente vão chegando Paulo Mendes Campos, Otto Lara Rezende, Hélio Pelegrino, Marco Aurélio Matos, a quem Emílio diz com doçura – “estive ontem com seu pai”. Uma vez eu estava presente, mas de súbito compreendi que se ia realizar um rito exclusivamente mineiro e achei melhor me retirar. Eles ficaram sussurando”.
Mineiro é assim mesmo. Fala para dentro. Como dizia Burton, no século passado, “o mineiro fecha os lábios e come as palavras até impedi-las de chegar ao ouvidos do estrangeiro”. E, invocando em seu socorro as autoridades de Saint-Hilaire e do Príncipe Max, explica que é herança indígena, como se atrás dos óculos de Carlos Drummond houvesse um índio tupinambá.
Esses cidadãos misteriosos, que sustentam fantasmas em Ouro Preto, em Itabira, ou até em Belo Horizonte – cuja idade ainda não parecia suficiente para gerar assombrações – ultrapassaram o equívoco do Patriarca e formularam uma conduta típica, baseada no equilíbrio e no compromisso; leram os clássicos e aprenderam o lição, que está em Montesquieu, de que o princípio da democracia é a virtude humilde do povo. Por isso, exerceram e exercem papel de relevo na comunidade nacional, projetando nela essa força indefinível que lhes veio da terra e da montanha.
A atração dos pólos culturais, políticos ou econômicos levou para fora de Minas muitos valores, dos quais o país usufruiu a inteligência e a cultura e que nem sempre encontraram a oportunidade de retornar à origem, como Ulisses vitorioso e experimentado voltou a Ítaca, depois de anos e anos de lutas e aventuras. Daqui da montanha, os estivemos a acompanhar e a louvar, como fizemos incessantemente a Guimarães Rosa ou a Luiz Camilo de Oliveira Neto, dois grandes mortos para reverenciar no Panteon que Minas ainda não instituiu.
Mas, a força telúrica permanece e, da mesma forma que levava o velho escravo congo a subir o morro e lá ficar agachado, como um faquir em meditação, induzindo o povo a supor que estava chocando e daí o nome “Gongo Soco” (congo choco), essas mesmas e obscuras influências estão conduzindo homens ilustres da presente geração a procurar de novo em Minas alento e inspiração para posteriores etapas de suas vidas de projeção nacional. O movimento apanhou em seu roldão Juscelino Kubitschek, Gustavo Capanema, Victor Nunes Leal e, em data mais recente, Afonso Arinos de Melo Franco.
O fato de terem escolhido a Academia Mineira de Letras para efetivar esse regresso às fontes de inspiração é indício de que esta velha Casa – este antigório, como diria um sacristão de São João Del-Rei – constitui expressão lídima do espírito mineiro, com a sua modéstia e a sua aparente quietude. Aqui, todos somos indivíduos que passamos a vida no cultivo do espírito e dos valores permanentes da cultura e da civilização.
O sucesso desses eminentes conterrâneos fora de Minas não lhes apagou a mineiridade e nem os afastou da reverência às origens. Um a um, como filhos longamente ausentes, estão se reagrupando em torno da instituição que melhor representa os que têm nas letras o centro de suas preocupações intelectuais.
Por isso, a vinda de Victor Nunes Leal para a Academia Mineira de Letras significa muito para a Academia e para Minas. É ele membro dessa estirpe de homens de espírito que, originários de pequenas cidades, apertadas entre rios e agrestes montanhas da Zona da Mata, trouxeram valiosa contribuição cultural para enriquecer Minas e o Brasil, distinguindo-se, nas atividades exercidas, pela seriedade e competência de desempenho, o que é a marca dos bons mineiros.
Mas, tais considerações não esgotam meu pensamento. Estou em que figuras como Victor Nunes Leal, modesto na origem, sóbrio na formação, competente na profissão, representam precisamente o que é Minas Gerais, não só por essas qualidades, já de si expressivas, mas também pela alta inspiração que as envolve e as impulsiona.
A simplicidade de sua vida aparece nessa inesgotável capacidade de trabalho, que resulta numa extensa produção de ensaios, pareceres e trabalhos de natureza profissional. Mas, demonstra-se também em atos familiares, como na festa de casamento de uma filha, a que assisti, há pouco tempo atrás. A cerimônia se realizou na modesta fazenda da família, à margem da estrada para Esmeraldas, onde os convidados – e éramos muitos – se reuniram em redor da encantadora figura de seu Pai, os noivos se apresentaram perante o altar armado ao sol da manhã no terreiro da casa, os violeiros das fazendas vizinhas executaram suas músicas prediletas e a confraternização foi geral: clero, nobreza e povo.
Na obra e na atividade de Victor Nunes Leal encontramos excepcionais demonstrações de erudição ou de capacidade para a pesquisa. Porém, acima delas, sobrepaira um pensamento humanista mais profundo, que vai além da análise da figura do chefe político, do parecer do advogado ou do acórdão do juiz. Não creio que se possa exaurir o seu pensamento com a enumeração do repositório de dados e interpretações que sua primeira e principal obra – Coronelismo, Enxada e Voto, 1949 – venha a oferecer. Não me satisfaz saber os resultados das observações, feitas com segurança e critério, em redor de um fenômeno social e político definido. Vejo, nelas e através delas, um esforço para o aperfeiçoamento da própria sociedade brasileira, analisada e criticada sob o ângulo estrito da figura do chefe político local. Seus dados estão sendo confirmados com o correr do tempo e eu mesmo fiz várias pesquisas de sociologia eleitoral que os corroboram, como a verificação de que, quando eram 13 os partidos políticos, em pequenas comunidades de menos de 9.000 eleitores, havia nítida tendência para duas legendas, duas famílias governantes e dois chefes ou “coronéis”, dando ao termo sentido amplo. A literatura posterior move-se na mesma direção. O que, entretanto, vejo nessa monografia é sobretudo o cientista político que, em pesquisa alentada, quer encontrar a chave para equacionar problema nacional. Este tema é típico da gente mineira, quando procura a compreensão do universal como solução primária e critério para o debate e equacionamento dos problemas particulares.
Aqui, vale a pena lembrar que o sucesso desta monográfica, que agora se edita em inglês, não estacionou o espírito criador de Victor Nunes Leal. Temos observado que os temas das teses de início de carreira de magistério costumam apresar seus autores, escravizando-os. Recordo-me de um jantar, em Nova York, em que reuni na mesma mesa esse lúcido cientista político baiano que é Navarro de Brito, e o ressabiado e polêmico Florestan Fernandes, de S. Paulo. Depois de muito conversarmos, Florestan, já na segunda garrafa de vinho da Califórnia, contou-nos que, durante mais de vinte anos, foi escravo dos índios tupinambás, objeto de sua tese de concurso para Sociologia da Universidade de S. Paulo. Como, posteriormente, deixou os índios e fez outra tese, mais extensa, mais madura e mais polêmica sobre o negro brasileiro, estou convencido de que agora apenas mudou de amo e é, paradoxalmente, um branco, filho de português, o escravo do “negro brasileiro”. Também eu tenho custado a libertar-me do Município, que foi assunto de uma primeira tese de concurso no magistério superior. O Município se associou tão intimamente à minha imagem, que um jornalzinho do interior, rebatendo apreciações que fizera a propósito de temas de administração local, não hesitou em chamar-me de orlando M… unicipal de Carvalho.
Porém, Victor Nunes Leal superou essa fase de subordinação a uma pesquisa de início de formação intelectual e sua produção floriu em inúmeras direções – da Política à Administração, da Teoria o Estado à Planificação Regional, dos temas de organização federal às grandes teses da vida política nacional.
O tema central de sua obra e de sua ação sempre foi um pensamento de âmbito universal, pois, como advogado e principalmente como juiz, tentou sempre aperfeiçoar o mecanismo de aplicação da lei, para que ela garantisse a justiça mais perfeita. Também na numerosa série de suas monografias e conferências vamos encontrar o mesmo pensamento diretor. Não é o cientista político, nem o jurista, nem o grande ministro do Supremo Tribunal Federal que se revelam na sua obra escrita: é o mineiro, é o humanista, isto é, o homem preocupado com os fins últimos da vida. Não é, pois, apenas por necessidade de composição que assim termina, em 1955, uma conferência sobre a divisão de poderes na Constituição: “Este é o grande desafio que o nosso tempo lança aos homens de estudo e de ação: o desafio à sua capacidade de organizar adequadamente a felicidade humana”.
Eminente Acadêmico Victor Nunes Leal:
É com alegria que o recebemos na Academia Mineira de Letras. Nestas salas tranqüilas perpassam as sombras de grandes homens que honraram Minas, por sua cultura literária, por sua erudição, por seus atos públicos, e nos inspiram com suas obras, seus exemplos e suas vidas.
É um templo de veneração ao espírito, onde revivemos a cada dia os valores universais de nossa civilização em constante mudança. Ela tem por base a meditação sobre o homem de Minas, essa criatura inquieta e insatisfeita que, em nosso torrão, desbravou florestas; fundou cidades; lutou e sofreu para retirar riqueza do fundo dos rios e do coração das montanhas; e construiu, em torno desses sofrimentos e dessas alegrias, uma civilização marcada pela montanha, pelo mistério e pela inquietação espiritual, mãe da desconfiança.
Abrindo os braços para recebê-lo, poderíamos repetir, com Guilhermino César:
“É isto mesmo, compadre,
Vá entrando devagar
Pise com todo cuidado
Que é terra de mineração.”